quarta-feira, 19 de outubro de 2016

OS PRECALÇOS DA VIDA


O PARENTE







































ALDEIA DE SOUDOS



O PARENTE

Quando eu era pequeno, o meu pai ao serão, enquanto obrava verga, ou cantarolava umas cantigas da tuna de que fez parte, ou contava histórias de antigamente, como esta que vou contar de um nosso parente.

Dizia meu pai que este seu parente foi muito novo para Lisboa, o que era habitual naquele tempo, onde começou a trabalhar como aprendiz de marçano, e como era um rapaz esperto, subiu na carreira e que uns anos mais tarde veio a ser o patrão e dono da mercearia, que era muito bem situada na baixa da Capital.

Com o passar dos anos e tendo já bons meios de fortuna, ficou viúvo e com quatro filhas de tenra idade.

Cheio de desgosto mas ainda bem novo, começou a procurar uma nova companheira, mas, meteu-se com uma mulher de maus costumes que o levou para boates e casinos e, desprezando o negócio, ao fim de uns anos faliu estrondosamente e regressou à sua aldeia natal.

Nessa aldeia tinha alguns bens herdados dos pais, e foi o que lhe restou. A partir daí começou a entrar nos eixos e voltou a casar com uma parente de meu pai, uma solteirona com propriedades e um quilo de ouro de fortuna, o que o ajudou a montar uma mercearia na aldeia, onde ficou a filha mais nova como caixeira e a filha mais velha fui estudar e formou-se como professora do ensino primário.

Mas o parente também tinha um problema complicado porque duas das filhas eram deficientes mentais. Mais tarde faleceu a segunda esposa e o parente já era idoso mas resolveu o problema indo as deficientes viverem cada uma para casa de cada irmã normal.

O parente lá viveu o resto da vida na aldeia, mais tarde, a filha professora tomou conta da loja onde penso que ela já a entregou à sua filha, mas ainda é viva e já viuvou há largos anos, bem como a sua irmã que também ficou viúva de um primo meu que era engenheiro civil e que faleceu em Santarém.

O resto desta história já não foi o meu pai que me contou, mas posso, ainda, acrescentar algo que me diz respeito.

A loja que referi na aldeia tinha também uma taberna e um talho anexos e durante muitos anos o único jornal que havia lá na terra era o
Jornal “O SÉCULO” e que se lia à borla na loja dos meus parentes. A partir dos meus doze anos, quase todos os dias à tarde lá ia à loja ler o jornal quando chegava de Tomar de comboio, porque eu nesse tempo andava a estudar nessa cidade no Colégio Nun’Álvares e, foi lá que tirei o Curso Geral dos Liceus.
Nesse tempo para mim o jornal “O SÉCULO” tinha muito interesse em se ler porque era uma inesgotável fonte de conhecimento, além do seu grande role de informação e anúncios de quase tudo o que havia, e já lá vão perto de sessenta anos.

Por fim, quero dar graças a Deus por ainda me lembrar do que contei e, do que muito mais sei, mas sem saber se terei tempo para contar todas as minhas memórias.


Cândido Rosa - Literatura.

LENDA DA MÁ VIDA











































LENDA DA MÁ VIDA


No casario daquele bairro velho a cair aos pedaços, a porta mais larga era a da taberna,onde se cantava o fado rasca ao desafio, e se bebia vinho carrascão no intervalo, para afinarem as gargantas já roucas.

Quando a tasca encerrava as portas todos saiam para a rua e alguns já bêbados vomitavam nas valetas e por ali adormeciam até ao raiar da aurora.


Os putos de manhã cedo iam a caminho da escolha, e não era raro vê-los a jogar à pedrada e a ficarem com cabeça rachada e serem levados ao Hospital da Misericórdia onde eram desencardidos e tratados.


Mas na escola onde aprendiam eram castigados com as régoadas, à lapada ou a levarem paolitadas na cabeça com a cana-da-Índia pela mão do professor.


Naquela escola entravam meninos rotos, piolhosos e sujos. Os mais burros ficavam no ao fundo da sala a escrever nas pedras com os lápis de pedra e a fazer contas erradas e a contar a tabuada com os dedos.


Muitos dos rapazes andavam descalços e mal-alimentados, muitas vezes a pedir pão.


Eram quase todos ruins que nem as cobras uns com os outros. Andavam sempre ranhosos, eram medrozos e sempre desobedientes, mas quando lhe davam um rebuçado atirado para brigarem todos em monte, era para eles um dia de festa.


Às portas e às janelas as calhandreiras mordiam umas nas outras por tudo e por nada.


No andar de cima as mulheres mal comportadas à janela acenavam aos fregueses para irem lá ter com elas pela calada da noite,uns subiam e outros desciam.


Até quem passava nu rua ouvia as camas a ranger com elas a gemer de prazer inventado com os clientes quentes e bem bebidos de aguardente, e que saiam de bolsos vazios.


Era uma pouca-vergonha diziam as más-línguas à porta da Igreja de São Pedro, quando as viam a entrar na igreja uma de cada vez e o dinheiro do freguês é que pagava a esmola.


No outro dia de manhã cedinho e de trouxa à cabeça lá iam ao Rio Almonda lavar a língua e a roupa suja.


Então ouviam tocar o sino lá no alto de torre a avisar a morte de mais um cliente da taberna que se finou com uma cirrose.


No outro dia seguiu para o Largo do Arraial e foi sepultado no cemitério à sombra dum cipreste com sete palmos de terra em cima dele.


Mais vos conto, porque esta lenda tem o substrato real da vida que se vivia, noutros tempos não muito distantes de agora, porque de todas estas cenas me recordo bem.