quarta-feira, 19 de outubro de 2016

LENDA DA MÁ VIDA











































LENDA DA MÁ VIDA


No casario daquele bairro velho a cair aos pedaços, a porta mais larga era a da taberna,onde se cantava o fado rasca ao desafio, e se bebia vinho carrascão no intervalo, para afinarem as gargantas já roucas.

Quando a tasca encerrava as portas todos saiam para a rua e alguns já bêbados vomitavam nas valetas e por ali adormeciam até ao raiar da aurora.


Os putos de manhã cedo iam a caminho da escolha, e não era raro vê-los a jogar à pedrada e a ficarem com cabeça rachada e serem levados ao Hospital da Misericórdia onde eram desencardidos e tratados.


Mas na escola onde aprendiam eram castigados com as régoadas, à lapada ou a levarem paolitadas na cabeça com a cana-da-Índia pela mão do professor.


Naquela escola entravam meninos rotos, piolhosos e sujos. Os mais burros ficavam no ao fundo da sala a escrever nas pedras com os lápis de pedra e a fazer contas erradas e a contar a tabuada com os dedos.


Muitos dos rapazes andavam descalços e mal-alimentados, muitas vezes a pedir pão.


Eram quase todos ruins que nem as cobras uns com os outros. Andavam sempre ranhosos, eram medrozos e sempre desobedientes, mas quando lhe davam um rebuçado atirado para brigarem todos em monte, era para eles um dia de festa.


Às portas e às janelas as calhandreiras mordiam umas nas outras por tudo e por nada.


No andar de cima as mulheres mal comportadas à janela acenavam aos fregueses para irem lá ter com elas pela calada da noite,uns subiam e outros desciam.


Até quem passava nu rua ouvia as camas a ranger com elas a gemer de prazer inventado com os clientes quentes e bem bebidos de aguardente, e que saiam de bolsos vazios.


Era uma pouca-vergonha diziam as más-línguas à porta da Igreja de São Pedro, quando as viam a entrar na igreja uma de cada vez e o dinheiro do freguês é que pagava a esmola.


No outro dia de manhã cedinho e de trouxa à cabeça lá iam ao Rio Almonda lavar a língua e a roupa suja.


Então ouviam tocar o sino lá no alto de torre a avisar a morte de mais um cliente da taberna que se finou com uma cirrose.


No outro dia seguiu para o Largo do Arraial e foi sepultado no cemitério à sombra dum cipreste com sete palmos de terra em cima dele.


Mais vos conto, porque esta lenda tem o substrato real da vida que se vivia, noutros tempos não muito distantes de agora, porque de todas estas cenas me recordo bem.

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